O amor cobre multidão de pecados
– Um estudo exegético de 1 Pedro 4:8
O que será que Pedro quis dizer quando ele escreveu “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados.”? (1 Pedro 4:8) É possível uma pessoa fazer algo de um amor tão profundo e forte que consegue o perdão de algum pecado seu, ou de outra pessoa? Deus leva em consideração nossos atos e até sacrifícios em decidir perdoar ou não algum pecado?
Palavras Chaves
“intenso” (gr. ektenes) “fervente, intensa” “constante” (At 12:5; 1 Pe 4:8)
“cobrir” (gr. kalupto) “cobrir, ocultar, esconder”(Mt. Mt 8:24; Lc 8:16; 23:30; Fig. Tiago 5:20; 1 Pe 4:8; 2 Cor 4:3) – Gingrich, F. Wilbur e Frederick W. Danker, Léxico do Novo Testamento Grego / Português, São Paulo: Edições Vida Nova, 1983, tradução Júlio P.T. Zabateiro
O texto imediato
Primeiramente, no própio texto, não encontramos a palavra “perdão” ou “perdoar”. Embora as traduções da NTLH e NVI tragam a palavra “perdoa”, a palavra no original é o verbo grego “kalupto”, que é traduzida como “cobrir (Mt 8:24; Lc 23:30; Tiago 5:20), ocultar (2 Cor 4:3) ou esconder (Mt 10:26; Lc 8:16)”. Em nenhuma das outras passagens em que ocorre no Novo Testamento a palavra significa “perdoar”. Esta palavra é melhor traduzida nas versões da Revista e Atualizada e a Corrigida por “cobre”.
Mas, como é então que o amor “cobre” pecados se não os perdoa? Vemos isso no contexto próximo. A frase completa de Pedro é “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados.” Este amor “intenso” (ou como traduz a NVI “sincero”) é um amor determinado. Não é um amor casual, que nasce de emoção ou algum vínculo passageiro. É o amor que vem daqueles que já descobriram o quanto Cristo sofreu “na carne” (4:1) por eles.
Pedro começa esta parte da carta relembrando seus leitores “Uma vez que Cristo sofreu corporalmente, armem-se também do mesmo pensamento, pois aquele que sofreu em seu corpo rompeu com o pecado, para que, no tempo que lhe resta, não viva mais para satisfazer os maus desejos humanos, mas sim para fazer a vontade de Deus.” (1 Pedro 4:1-2) Parte desta vontade de Deus é o amor mútuo, uns para com os outros, um amor que é tão forte que é capaz de não só perdoar, mas, de procurar poupar quem pecou contra nós.
O Contexto Maior
Para entender esta passagem, é fundamental partirmos do princípio de que o perdão de pecados vem somente em Cristo e por meio do sacrifício redentor dEle.
– “Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus.” Hebreus 10:12
– “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos.” Atos 4:12
Nenhum ato nosso, por maior ou mais doloroso que seja, pode efetuar o perdão de um único pecado. Somente o sacrifício de Jesus foi capaz de fazer isso, e somente o sacrifício dEle na cruz é aceitável a Deus para perdão de pecados. Eu não consigo perdoar pecados, nem meus nem de outros no sentido absoluto. Eu posso perdoar o que alguém fez para comigo. Mas, não consigo para ele perdão diante de Deus pelo que ele fez. Isso só Deus pode fazer.
Como vários comentaristas têm observado, esta frase de Pedro lembra muito Provérbios 10:12 “O ódio excita contendas, mas o amor cobre todas as transgressões.” Há um paralelismo evidente aqui. Se o ódio é contrastado com o amor, o “cobrir” das transgressões de outros é contrastado com o “excitar contendas”. O que é excitar contendas, senão semear e acirrar diferenças, instigar conflito, e assim colocar uma pessoa contra outra. Uma das maneiras mais comuns de fazer isso é lançar acusações, (tendo base na verdade ou não) contra outras pessoas. Em contraste com quem faz isso, o amor procura “cobrir”, ou seja, proteger.
Alguns comentaristas
Lenski, no seu comentário sobre esta passagem, refletiu “Amor esconde (os pecados dos outros) da sua própria vista, mas, não da visão de Deus. O ódio faz o contrário, ele bisbilhota para descobrir algum pecado ou semelhança de pecado num irmão, para daí espalhar e até exagerar, festejando a descoberta.” Ou seja, aquele que compreendeu o quanto Cristo o amou, ao ponto de sacrificar seu próprio corpo por ele, vai amar seus próximos com um amor sincero e determinado. Ele vai deixar de lado os danos que sofre, vai olhar além das falhas do seu próximo e vai, no que competa a ele, “cobrir” os pecados dos outros.
“O amor ‘intenso’ implica um propósito que é buscado de forma determinada. ‘Amor intenso’ fala não tanto da intensidade emocional, mas é, neste contexto, um amor que prossegue apesar de dificuldades, porque é um amor que ‘cobre uma multidão de pecados’.” (Jobes, K. H. (2005). Comentário de 1 Pedro. Baker Exegetical Commentary on the New Testament (p. 278). Grand Rapids, MI: Baker Academic.)
– “A queda para baixo é quebrada quando alguém em amor indulgente quebra o ciclo de agir, movido por sentimentos magoados e propagando o erro…” (Jobes, K. H. (2005). Comentário de 1 Pedro)
– N.J.D. White escreveu que uma pessoa, sob o controle do amor de Deus, “quando sofre um prejuízo privado e pessoal, age como se nada tivesse acontecido. Desta forma, pelo simples ato de ignorar o ato cruel ou palavra de injúria, … ele leva a maldade ao fim; ela morre e não deixa semente.” (do comentário de 1 Pedro de K.H. Jobes).
– “O amor aguenta todas as coisas, é paciente em tudo. Nao há nada rude, nem arrogante no amor. O amor não sabe nada de divisões, o amor não lidera nenhuma rebelião, o amor faz tudo em harmonia. No amor todos os eleitos de Deus foram aperfeiçoados; sem amor nada agrada a Deus. Em amor o Mestre nos recebeu.” ( Clemente de Roma, Carta aos Coríntios 49)
O que a passagem não significa
Evidentemente esta passagem não está ensinando que devemos “esconder” pecados ou crimes dos outros no sentido de defender atos ilícitos ou protejer criminosos. O foco desta passagem é claramente naquilo que tange à vida pessoal. Eu devo amar o meu próximo ao ponto de “cobrir”, ou seja, esquecer e evitar espalhar aquilo que ele fez contra mim. Se ele cometeu algum ato ilícito ou pecou contra outro, Pedro não está encorajando a “lei do silêncio”, que tantas vezes contribui para a propagação da injustiça. O ponto é estritamente na relação pessoal e no que eu decidir fazer relativo aos danos que eu pessoalmente venha a sofrer.
Este texto não está dizendo que devemos então fazer vista grossa de pecado. O próprio Senhor nos ensinou das consequências de pecado não arrependido (Lucas 13:5 “se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis.”) e da necessidade de confrontar o pecado e o pecador e chamá-lo ao arrependimento (Mateus 18:15-17). Este processo envolve o reconhecer e confrontar o pecado e o pecador, e signifca que este pecado, se não for reconhecido e arrependido pelo pecador, terá que ser compartilhado com outros – não pode ser “coberto”, tem que ser “descoberto”. Mas, nunca com o intúito de espalhar a notícia, e sim, de (com a ajuda de outros irmãos) persuadir o pecador a se arrepender. Este é sempre o objetivo.
Conclusão
Jobes conclui seu comentário sobre esta passagem desta maneira: “Pedro está preocupado com comportamento que poderia destruir a comunidade Cristã; tais comportamentos precisam ser eliminados se a igreja irá sobreviver… Em 3:9 Pedro lembra ‘Não retribuam mal com mal, nem insulto com insulto; ao contrário, bendigam; pois para isso vocês foram chamados, para receberem bênção por herança.’ Pela definição de Pedro, ‘amor’ não é apenas um sentimento caloroso, mas significa tratar outros em comunidade Cristã de modo a promover a unidade e evitar ou superar comportamentos que destroem relacionamentos.
Por que esta era uma virtude tão importante? Em nossos tempos nós vemos igrejas divididas e congregações alienadas sobre questões triviais. Embora seja uma situação dolorosa, tal discórdia não destrói a presença Cristã em nossa sociedade porque há tantas congregações Cristãs em praticamente cada cidade. No entanto, na época em que Pedro escreveu, a igreja Cristã era pequena, com talvez um punhado de membros em cidades distantes umas das outras pela Ásia Menor.
Se relacionamentos naquela comunidade fossem destruídos, os crentes alienados não tinham para onde ir, e o testemunho do Evangelho naquele lugar poderia ser apagado. Na medida em que a pressão do estado aumentou contra a igreja Cristã, a ameaça de destuição por fora cresceu de forma significativa sobre as igrejas nascentes. Quão trágico se eles fossem destuídos por dentro pela sua própria incapacidade de viver em harmonia com outros crentes! Tamanho amor dentro da igreja foi o principal recurso para a preservação da comunidade Cristã como sociedade alternativa.” (Jobes, K. H. (2005). Comentário de 1 Pedro)
Refletindo sobre a situação de tantas divisões e rachas entre igrejas e dentro de denominações, é de se perguntar se não estamos precisando desta exortação novamente nos dias de hoje. Hoje, há templos praticamente “em cada esquina”. Um seguidor de Jesus que estiver em conflito numa congregação pode facilmente partir para outra, sem que a igreja de onde ele partiu morra, (e sem que ele tenha que se incomodar em lidar com um conflito entre ele e outro irmão.)
Será que temos avançando? Ou, será que a facilidade com qual podemos trocar de congregação tem nos levado a evitar de perdoar, de buscar conciliação, e de “cobrir” o pecado do nosso próximo? Será que não estamos precisando hoje, mas, do que nunca ouvir de novo esta preciosa palavra do Senhor?
“Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados.”? (1 Pedro 4:8)
Aplicação
Não podemos “pagar” pelos nossos pecados amando outros, ainda que de forma sacrificial. Nem tampouco podemos fazer isso pelos pecados dos outros. Mas, podemos fazer algo que, para seres humanos, talvez seja ainda mais admirável – cobrir o mal que outro fez conosco. Ao invés de tornar notório, de espalhar, ou de perseguir a “justiça” por um mal feito contra nós, nós podemos decidir fazer parte da “justiça” de Deus – de encobrir o pecado, a falha, o fracasso do outro.
Certa vez após a sua ressurreição, Jesus se encontrou com o próprio Pedro numa praia, sentado com os outros discípulos ao redor de uma fogueira (João 21:15-17). Jesus escolheu não lembrar a Pedro (e aos outros) o quanto Pedro falhou na sua promessa de ir com Jesus até a morte, e, pior ainda, que ele negou o Mestre veementemente em público. Jesus teria todo direito de levantar aqueles pecados, de repreender a Pedro, de indagá-lo se ele estava mesmo arrependido. Mas, tudo isso Jesus deixou para trás. Ele cobriu.
Ao invés disso, Jesus apenas perguntou a Pedro se ele O amava. Jesus sabia o quanto Pedro estava envergonhado pelo seu pecado. E querendo “cobrir” isso, Jesus sequer mencionou; apenas deu a esse querido discípulo a oportunidade que ele tanto precisava de se redimir, e em público, de talvez o maior e mais doloroso pecado da sua vida – pecado justamente contra Ele, Jesus. Depois de acolher a declaração de Pedro, o pecador, Jesus confiou a ele a grande missão da sua vida: “Pastoreia as minhas ovelhas.”
Imagine o quanto isso significou para Pedro. Será que ele estava lembrado daquilo que Jesus fez com ele, Pedro pecador, quando ele escreveu “tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados”?
Veja também de Dennis Downing
“Será que realmente ‘Tudo posso naquele que me fortalece’?”
e a versão mais condensada deste estudo:
“O amor cobre multidão de pecados”
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