Identificando e usando
princípios gerais
de Walter C. Kaiser, Jr.
Uma grande parte da arte de interpretação de passagens é mover-se das questões específicas mencionadas no texto bíblico para o princípio geral que está por trás desses elementos específicos.
Ao relatar uma história de família, Jack Kuhatschek, me fez lembrar de uma experiência parecida que tivemos como família com nosso filho mais novo, Jonathan.[1] Jonathan ficou encantado quando finalmente estava com idade suficiente para agradecer pela comida à mesa em nome de toda a família. Para a exasperação de seus irmãos e irmã mais velhos, ele usou a oportunidade para falar de praticamente tudo o que viu sobre a mesa. “Obrigado pelo sal e pela pimenta. Obrigado, Senhor, por nossas colheres, garfos e facas. Obrigado pelo leite, pela salada, pelo pão…” E assim ele continuou sua longa lista enquanto a comida esfriava. Finalmente, e para a felicidade de seus irmãos já irritados, Jonathan concluiu com o “Amém”.
Ou as instruções que havíamos dado a Jonathan sobre como orar agradecendo a comida em geral não foram entendidas ou eram intencionalmente ignoradas. Porém, passados alguns meses, um dia ele de repente nos surpreendeu ao dizer: “Senhor, obrigado pela comida sobre nossa mesa. Em nome de Jesus, Amém” Jonathan havia aprendido a generalizar.
A legitimidade de tais práticas de generalização é repetidamente afirmada no próprio texto bíblico. Deus não apenas resume toda a sua lei em dez mandamentos (Êx 20.1-17; Dt 5.6-21), como também dá outros sete sumários de leis. O Salmo 15 conserva a Lei de Deus em onze princípios; Isaías 33.15 a expõe em seis mandamentos; Miquéias 6.8 as resume em três ordens; Isaías 56.1 as reduz ainda mais a dois mandamentos; e Amós 5.4, Habacuque 2.4 e Levítico 19.2, colocam toda a lei em uma única declaração geral.
O próprio Jesus deu continuidade a essa mesma tradição ao resumir a lei toda em dois princípios: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento… O segundo, semelhante a este é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22.37-40; Lc 10.26-28; Dt 6.5; Lv 19.2, 18).
A fim de identificar princípios gerais no texto bíblico, há três perguntas que os intérpretes devem fazer: O autor afirma o princípio de maneira explícita na passagem em questão? Se não o faz, um contexto mais amplo revela esse princípio geral? A situação específica do texto contém quaisquer razões, explicações ou dicas que poderiam sugerir o que motivou o escritor a ser tão concreto em vez de abstrato, ao mencionar as ilustrações específicas que ele escolheu?
A busca pelos princípios no texto bíblico normalmente não se encontra em palavras ou frases isoladas e certamente não está em versículos editoriais do texto. Em vez disso, tais princípios são mostrados pela tese que controla parágrafos, capítulos, seções de um livro, e até mesmo livros inteiros da Bíblia.
Há inúmeros exemplos de um princípio específico declarado explicitamente dentro de um bloco de ensinamentos. É o caso, por exemplo, da quinta visão dentre as oito visões de Zacarias, em que ocorre a aparição enigmática de um candelabro de ouro ladeado por duas oliveiras. Quando o profeta perguntou “Que é isto?”, recebeu como resposta — “Esta é a palavra do Senhor a Zorobabel: Não por força, nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6). Esse é princípio controlador geral de toda a passagem: o que for conquistado não virá pelas mãos de líderes políticos e religiosos; virá por meio do Espírito Santo.
Em 1 Coríntios 8 Paulo trata da questão de comprar comida que foi oferecida a ídolos. No versículo 9 ele declara explicitamente o princípio relevante: “Vede, porém, que esta vossa liberdade não venha, de algum modo, a ser tropeço para os fracos.” Essa idéia vale para qualquer liberdade ou restrição a ser exercida na compra de carne nos mercados que eram conhecidos por sua ligação com o templo e seus rituais sacrificiais.
Mas, e se o texto não fala diretamente qual é o princípio? Isso acontece com freqüência no texto narrativo que tende a declarar as coisas indiretamente, em lugar de colocá-las na forma de discurso direto, como acontece na prosa. Nesses casos, podemos contar com o contexto geral para nos ajudar.
Gênesis 37-50 registra a história de José. Apenas uma ou duas vezes durante a longa narrativa dessa história recebemos alguma indicação do que trata esse episódio todo e por que Deus queria que ele fosse registrado em sua Palavra. Quando José se revelou aos seus irmãos, ele concluiu: “Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos irriteis contra vós mesmos por me haverdes vendido para aqui; porque, para a conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós… Deus me enviou adiante de vós, para conservar vossa sucessão na terra e para vos preservar a vida por um grande livramento” (Gn 45.5, 7). Mais tarde, José repetiu esse tema aos seus irmãos ao dizer-lhes: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida” (Gn 50.20). O princípio da providência prevalecente de Deus, portanto, é a chave para a interpretação da narrativa sobre José. Somente o contexto a revela, mesmo que cada episódio individual ou perícope dentro da história não mostre esse princípio claramente como sua própria conclusão.
Em outros casos, nem uma declaração direta do princípio e nem mesmo uma declaração indireta dentro do contexto mais amplo aparece. O que fazer então? Aqui, a busca pelo princípio geral deve ser feita com a minúcia de detetives investigando a cena de um crime em busca da pistas.
Outros recursos literários são acionados nesse ponto, tais como a cláusula de motivo, que está freqüentemente ligada aos mandamentos bíblicos.[2] As cláusulas de motivo podem tomar pelo menos uma entre quatro formas (a cláusula de motivo aparece em itálico):
1. Explanatória — um apelo ao bom senso do ouvinte. “Se um homem
amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe, será morto; amaldiçoou
a seu pai ou sua mãe; o seu sangue cairá sobre ele” (Lv 20.9; ver
também Dt 20.19; 20.5-8).
2. Ética — um apelo à consciência, à moral. “Quando edificares uma
casa nova, far-lhe-ás, no terraço, um parapeito, para que nela
não ponhas culpa de sangue, se alguém de algum modo cair dela”
(Dt 22.8).
3. Religiosa e teológica — um apelo à natureza e vontade de Deus. “Não profanarão as coisas sagradas que os filhos de Israel oferecem ao Senhor, pois assim os fariam levar sobre si a culpa da iniqüidade, comendo as coisas sagradas; porque eu sou o Senhor que os santifico” (Lv 22.15,16; Ver Dt 18.9-12).
4. História da redenção — um apelo à intervenção do Senhor na história de seu povo. “Quando vindimares a tua vinha, não tornarás a rebuscá-la; para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será o restante. Lembrar-te-ás que foste escravo na terra do Egito; pelo que te ordeno que faças isso” (Dt 24.21,22).
Uma vez que identificamos o princípio geral, devemos aplicar esse princípio à nossa vida, seja à mesma situação que o texto das Escrituras apresenta ou a uma situação semelhante ou comparável.
O livro de Tiago ilustra ambas as formas de aplicar um princípio básico. Esse livro pode muito bem ser o resumo de uma série de sermões pregados por Tiago e que têm como base uma parte da Lei da Santidade, nesse caso, em Levítico 19.12-18. Cada versículo dessa passagem, exceto pelo versículo 14, é citado ou aludido no livro de Tiago.
Em Tiago 2.1, o autor repete uma parte da “lei real do amor” de Levítico 19.15 que diz: “Não farás injustiça no juízo” O princípio é declarado claramente. Ele também é ilustrado em Tiago 2.2-7 quando se fala como a igreja deve acomodar o homem rico usando anéis de ouro e roupas de luxo e o pobre andrajoso. Se o homem pobre está sentado no chão e o homem rico recebe um bom assento, não seria esse um importante tipo de discriminação que ofende o princípio de não se mostrar parcialidade? Mas não é apenas nesse contexto que a mesma política não-discriminatória poderia ser usada com autoridade e precedência bíblica. Aliás, Tiago 2.9 repete o princípio mais uma vez e mostra como ele se encaixa num princípio ainda maior: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19.18b; Tg 2.8). O princípio dessa passagem enquadra-se em qualquer situação que possa prejudicar meu próximo (definido nas Escrituras como qualquer necessitado).
Assim, a aplicação pode envolver uma situação idêntica em que crentes negros ou os de outras origens étnicas eram segregados a uma parte menos confortável da igreja, a fim de dar preferência ao grupo racial dominante ou à classe que “pagava as contas” daquela igreja. Ou ainda, a aplicação pode estender-se além de uma situação igual ou idêntica para outras que sejam semelhantes e e comparáveis desde que também estejam relacionadas ao princípio geral em questão.
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O livro de Walter C. Kaiser, Jr. e Moisés Silva do qual este texto foi extraído, “Introdução à Hermenêutica Bíblica“, pode ser encomendado da Editora Cultura Cristã selecionando a capa do livro ao lado:
[1] Jack Kuhatschek, Appling the Bible (Downers Grove, IL.: InterVarsity Press, 1990), pp. 51-52.
[2] O primeiro estudioso de tempos modernos a mostrar a função da clausula de motivo foi Berend Gemser, “The Importance of Motive Clause in Old Testament Law”, em VT, volume sup. 1 (1953): 50-66.